Fonte: a2kBrasil
Autor: Koichi Kameda*
Está para ser sepultado um debate que sequer começou. Num momento em
que a sociedade começa a se engajar nas discussões sobre a privacidade
na internet, uma proposta legislativa com forte repercussão na
privacidade genética teve aprovação recorde no Congresso Nacional.
Ninguém questiona a contribuição da tecnologias do DNA em atividades
forenses, sendo já consagrado o seu uso para investigação de paternidade
e resolução de crimes. Contudo, a criação dos bancos de DNA de
indivíduos merece um olhar mais atento por parte da sociedade
brasileira, em razão de seu impacto na proteção de direitos fundamentais
de inocentes. A experiência internacional revela que se mal
implementados, esses bancos trarão mais dores de cabeça do que
benefícios.
No Brasil já existem bancos de DNA em mais de 15 Estados e a sua
integração ocorre por meio de uma rede nacional. Eles funcionam do
seguinte modo: são armazenados apenas os perfis genéticos – sequências
de números obtidos a partir da análise da parte não codificante do DNA –
e a informação sobre o gênero do indivíduo; comparando-se os perfis
genéticos dos indivíduos com o perfil extraído da cena do crime são
identificados suspeitos. Em geral, esses bancos incluem os perfis de
condenados por crimes de sangue e sexuais, mas também podem conter os
dados de pessoas ainda sob investigação. O projeto nº. 2.458/2011 torna
obrigatória a coleta e o armazenamento de perfis genéticos de condenados
por crimes hediondos e cometidos com violência de natureza grave, e
abre a possibilidade de os investigados também serem submetidos à
identificação genética se houver autorização judicial.
Ao projeto 2.458/2011 podem ser feitas pelo menos duas críticas: o
silêncio sobre o descarte de amostras biológicas e a ausência de um
prazo razoável para retenção dos perfis genéticos. As amostras
biológicas contêm informações sobre a saúde e a hereditariedade das
pessoas, devendo o seu descarte estar expresso na futura legislação para
evitar a sua retenção indefinida pelas autoridades e utilização para
outros fins que não a obtenção do perfil genético. Além disso, os perfis
genéticos por si mesmos permitem o rastreamento de indivíduos e seus
familiares, pois estão ligados a suas demais informações pessoais
contidas em outra base de dados, o que permitirá sua identificação caso
haja coincidência entre o seu perfil e o da cena de um crime sob
investigação. Logo, indivíduos que foram incluídos nos bancos durante a
investigação criminal devem ter os seus dados imediatamente excluídos
caso sejam absolvidos ou não forem denunciados. Essas preocupações
deveriam estar expressas no PL 2.458 para garantir a proteção da
privacidade de pessoas que por ventura venham a ser incluídas nos bancos
de DNA brasileiros.
Olhar a experiência internacional nesse tema é importante não para
taxar o atraso do Brasil, mas para aprender com os erros cometidos pelas
autoridades de outros países. No Reino Unido, pioneiro na implantação
dos bancos de DNA, modificações na lei permitiram a expansão do banco,
inicialmente voltado para os condenados por crimes graves, para a
inclusão e retenção por tempo indefinido dos perfis genéticos de
inocentes. Como consequência, crianças, adolescentes e até uma dona de
casa foram parar no banco de DNA, tendo os seus dados retidos
indefinidos, situação que só foi revertida após a condenação do governo
britânico pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Além disso, alguns
casos recentes de contaminação de amostras genéticas têm levado
especialistas e autoridades a refletirem sobre a credibilidade e a
segurança das informações mantidas nos bancos de perfis genéticos.
Para evitar que o Brasil passe pelos mesmos problemas e precise
voltar a discutir uma nova legislação, como está ocorrendo no Reino
Unido, um debate amplo e aberto, com participação de diferentes atores
da sociedade civil, incluindo acadêmicos e representantes de ONGs,
deveria estar ocorrendo. Em razão do processo de aprovação do PL 2.458,
que deixou a desejar do ponto de vista democrático, cabe agora à
Presidenta velar pela proteção dos direitos fundamentais que estão em
jogo na criação dos bancos de perfis genéticos.
*Koichi Kameda é pesquisador da Fundação Getulio Vargas e mestrando em Bioética e Saúde Coletiva (PPGBIOS-UERJ)
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